sexta-feira, 25 de maio de 2012

A construção social de Pe. Lira


  Vejam este importante relato histórico feito por Marcos
 Damasceno, escritor e historiador inocentino, profundo conhecedor da história
 de Dom Inocêncio, sobre a atuação de uma figura de grande importância para 
a região, o fundador do município...
Padre Lira pertence a uma geração gloriosa da Igreja Católica. Manuel Lira 
Parente é homem valoroso.
Sua personalidade marca nove décadas de vida social, dedicada ao próximo. 

Nasceu em 1919. Filho natural de Bom Jesus do Gurgueia – PI, sendo filho 
legítimo de São Raimundo Nonato-PI. Órfão aos 7 anos de idade.

Anos depois, no começo dos anos 30, foi adotado por Dom Inocêncio. 
Em 1939, o Santo Bispo coloca-o para estudar no Seminário Beneditino de 
Salvador-BA. Uma iniciativa brilhante em formar um Clero com jovens nativos.
Além dele, outros jovens; Padre Solón Correia de Aragão era dessa turma.
 


Em 1945, Padre Lira e os demais jovens nativos são ordenados, e tornam-se 
padres da Prelazia. A missão seria realizar a desobriga-missão, oportunizando 
as pessoas de regiões distantes cumprirem os deveres para com a Igreja 
Católica; também, assegurar-lhes os direitos católicos. Dom Inocêncio convida
a todos:

- Vamos tirar nossos irmãos do isolamento! A desobriga é uma forma de a 

Igreja ir até as comunidades. (Escritos de Zeca Damasceno).

A partir desta época, houve uma revolução social na região.

Grandes investimentos e avanços significativos. Um trabalho pastoral, e social,
que atinge aos rincões isolados; evangelizando pessoas e emancipando 
comunidades. E de qualidade, com boa organização e eficiência. 

Batizados, casamentos, Primeira Comunhão, dentre outros trabalhos. Uma 
ocasião muito aguardada pelas pessoas. Um dos pontos de sua realização era
na casa do meu bisavô João Rodrigues Damasceno (1890-1968), no Rosilho. 
Juntava-se multidão, uma verdadeira festa popular. As roupas novas eram 
preparadas para tal ocasião. A desobriga começava em outubro.

 


Os padres percorriam as regiões pertencentes à Paróquia, consequentemente,

à Diocese (na época, ainda Prelazia). O município de São Raimundo Nonato-PI 
era enorme territorialmente. Longas distâncias. Existia distância de mais de 
200km. O trabalho, é bom que se diga, foi iniciado por Dom Inocêncio López 
Santamaría (1874-1958). O fato, é que essa missão católica - a desobriga-
missão -era tarefa difícil e trazia complicações na saúde dos padres. 
Montados a cavalos eles peregrinavam semanas e mais semanas; no final, 
dois meses de viagem. Não existia carro na região. Um trabalho espirituoso.

Padre Lira, por exemplo, sofreu no início uma úlcera de estômago e problemas

na garganta. O calor era pavoroso. A sede era frequente, pelas longas 
distâncias entre uma casa e outra. Também era constante ele sofrer febre, 
vômitos, dores de estômago e fortes dores de cabeça. Era um trabalho - por 
mais que parecesse simples - de difícil realização. E muito relevante 
socialmente; promovia a dignificação e a socialização das pessoas.

Além de padre missionário, Padre Lira se destaca como padre educador. 

Começou sua atuação sendo professor no Ginásio Dom Inocêncio, edificado 
em 1948, marco da Educação da região. Depois auxiliou Monsenhor Nestor 
em outras atividades educacionais na referida instituição de ensino.

Posteriormente, foi diretor do Ginásio; com notável atuação. Além da lição 

escolar, existia a lição de cidadania. Nosso mestre desenvolveu um heroico 
trabalho educacional.

Padre Lira ganha expressão regional, sendo notável líder social. No começo 

dos anos 50 passa a ser cortejado para a política. Recebe convite até para 
candidatar-se a senador da República pelo Piauí, com reais chances de ser 
eleito. Isso foi depois de ter sido prefeito são-raimundense. Não quis ser, 
sendo candidato seu primo Marcos Parente, que acaba morrendo num 
acidente automobilístico, juntamente com o candidato a governador 
Demerval Lobão. Houve a substituição de candidatura a senatória. Surge o 
nome de Joaquim Parente, irmão de Marcos Parente, que, de fato, foi 
candidato e eleito senador pelo Piauí.

Na conjuntura política local, o padre missionário resiste também à ideia. Tinha 

em mente que seu trabalho pastoral buscava a unidade da sociedade; tinha o 
espírito de comunhão. E a política, muitas vezes, desagrega e traz desavenças. Conclamado a esperança naquele momento, acaba aceitando a missão. Foi 
candidato a prefeito de São Raimundo Nonato-PI, em 1954. Numa disputa 
acirrada com prof. Ariston Dias Lima, irmão do Monsenhor Nestor, o padre 
ganha a eleição. Administra de 1955 a 1958. No último ano de sua gestão, 
ocorre o falecimento de Dom Inocêncio. Dom Amadeo González é nomeado 
Bispo Prelado.

Em 1959, no início do ano, Padre Lira pede licença à Igreja, por 4 anos, para ir 

à cidade de São Paulo-SP, em busca de recursos para seu trabalho educacional. 
Ao chegar a capital paulista, foi direto para o Convento dos Padres Mercedários. Receberam-lhe muito bem, mas a casa estava superlotada. Muda-se para o 
Edifício Martinelli, no centro, hospedando-se num apartamento emprestado por 
um parente. Sofre muitas dificuldades, por inúmeras vezes Padre Lira passa 
fome. Começa a botar o plano em prática. Com algumas reservas juntadas 
registra a constituição da Fundação Ruralista (ou Centro Rural), a 11 de 
novembro de 1958; a instituição passa a ter formalidade jurídica. A meta, então,
seria conseguir um estabelecimento para seu funcionamento. O lugar já estava 
na sua mente.

Conhece Padre Garcez, Capelão da Igreja Nossa Senhora do Rosário, que 

apresenta-lhe a Condessa Matarazzo (matriarca de uma família de empresários). 
Também Padre Garcez apresenta-lhe duas freiras da Congregação Filippini, que 
colaboram bastante com seu trabalho. Fica em São Paulo-SP até 1962. Sua 
lembrança:

- Os quatro anos (1959-1962) vividos no Martinelli são uma feliz lembrança, 

embora houvesse momentos muito duros; porque passei fome, sei hoje o 
que a fome significa. (“Um Homem Contra a Seca”/Peggie Benton: 1973).

Seu tio Alcibíades, funcionário público aposentado no Rio de Janeiro-RJ, viúvo, 

resolve apoiá-lo. Do sobrinho, o pedido:
- Vá para Curral Novo, percorra as redondezas e veja se consegue um pedaço 

de terra à venda. (“Um Homem Contra a Seca”/Peggie Benton: 1973).

Alcibíades foi para Petrolina-PE, onde compra uma casa. Daí começa sua viagem, 

como um bandeirante, rumo ao povoado Curral Novo, local escolhido para sediar 
a Fundação Ruralista. Encontra um sítio à venda, da Dona Furtuosa, um pouco 
distante de Curral Novo, em torno de 9 km. A dona resolvera vender a gleba. 
Padre Lira autoriza a compra, depois que recebe a notícia do tio. O lugar não 
tinha nome. Alcibíades fica arranchado durante 6 meses num umbuzeiro.

Padre Lira viaja num caminhão adquirido e muitas doações. Chega a janeiro de 

1963, ao povoado Curral Novo. É recebido pelo extraordinário João de Sousa 
Rodrigues – Janjão (1913-2001), homem influente e de grande hospitalidade. 
Primo do meu avô. Janjão dá total apoio ao ilustre visitante, seu velho amigo. 


Diante do comunicado de sua decisão em morar em nossa terra, oferece uma 
casa para o padre morar; e ainda uma moça que passa a lhe secretariar: Virgínia 
Oliveira, sobrinha de sua esposa Mariêta e neta de Tiago Oliveira.

Inicia-se a construção da sede da Fundação Ruralista. Ao falar sobre a proposta 

de abrir escolas, de início, notadamente nas regiões mais isoladas, houve falta 
de entusiasmo por parte de muitos. Existiu até resistência à ideia. O bordão: 
“A Educação não compensa. Estudar pra quê? Os filhos têm é que ajudar na 
roça!” Ao lamentar isso com meu tio Janjão, ouve o conselho:
- Padre, muitos não fazem, embora tenham oportunidades para isso. E quando 

aparece alguém que faz, eles condenam.

Acredite, pois, no reconhecimento por parte da maioria. (Escritos de Zeca 

Damasceno).

Da parte dele, houve acolhimento social. A realidade, aos poucos, vai se 

revelando e ele se impondo diante dela. O espírito missionário sempre fala mais 
alto. Tempo de gestação de novas mentalidades, um novo saber. Algo de novo 
vai fecundando nas mentes das pessoas.

Em maio de 1964, a Irmã Mary do Convento Filippini, na cidade Winchester 

(Inglaterra) fala sobre Padre Lira à Dona Muriel Heading Mitchell, uma senhora 
inglesa. Dona Muriel torna-se sua “mãe social” e Patrona da Fundação Ruralista, 
sendo a maior apoiadora do seu trabalho.

As escolas da Fundação Ruralista começam a funcionar a 01 de junho de 1965, 

com 72 alunos na sua própria sede, e 40 crianças na escola das Cacimbas. 
Sendo a estrutura física precária, não existia no momento nenhum prédio escolar; 
as escolas se resumiam a latadas, sem mesa para os professores e sem quadro 
para escrever, com alunos sentados no chão ou em cepos de madeira.

Disse emocionado, Padre Lira:
- Desejo que a escola seja para eles muito mais do que uma simples tentativa de instrução; que lhes dê tudo quanto lhes falta em casa: calor humano, recreação, 

conforto, música e até comida. (“Um Homem Contra a Seca”/Peggie Benton: 
1973, pág. 41).

Em maio de 1966, Kenneth Benton, irmão de Dona Muriel, é nomeado Conselheiro 

da Embaixada Britânica no Brasil (na cidade do Rio de Janeiro – RJ). Sua esposa 
Peggie Benton escreveu o livro “Um Homem Contra a Seca” (1973: Editora Agir/RJ, 
216 pág.). Em 1967, Padre Lira recebe a notícia de que Dona Muriel estaria no Rio 
de Janeiro – RJ, visitando seu irmão. Viaja para o encontro com sua “mãe inglesa”. 
No mesmo ano, o casal Benton (o conselheiro e a escritora) esteve visitando a 
Fundação Ruralista.

Uma maternidade rural foi construída aqui, a primeira do Brasil; batizada 

“Maternidade Peggie Benton”. Até então, os índices de mortalidade infantil eram alarmantes pelo sertão, notadamente pelo “mal de sete dias”. Na verdade, era o 
tétano.

Os partos eram feitos de forma empírica, por parteiras, que utilizavam 

equipamentos e ferramentas sem a necessária esterilização. Com isso, o 
tétano no umbigo da criança era constante ocorrer. As parteiras usavam ainda, 
muitas vezes, unguentos (medicamentos caseiros ou artesanais). Outra questão desafiadora eram os índices de mortalidade de mães, no momento do parto.

De maneira, que tais indicadores sociais vergonhosos e preocupantes chamaram

 a atenção do padre missionário. Com a maternidade, sediada no Sítio Embargo 
(sede da Fundação Ruralista), foram atendidas duas demandas; foram resolvidos 
dois negativos índices sociais. As mães contavam ainda com uma casa, onde 
ficavam na ocasião do parto; chegavam dias antes e só saíam dias depois. 


Padre Lira ainda disponibilizava um carro para deixar a mãe e o bebê em casa. 
Como informação importante para a ocasião, eu nasci lá; nasci a 16 de março de
1982.

A Fundação Ruralista, além da maternidade, dispunha também de um grande 

suporte medicinal. Nos moldes do PSF (Programa Saúde da Família). 


Atendimentos emergenciais, tais como: em caso de acidentes (contenção de 
hemorragia, sutura, curativos, procedimentos ortopédicos etc.), em caso de 
picada de cobra (soro antiofídico), dentre muitos outros. Contava ainda com 
uma ambulância, para o devido encaminhamento para um hospital, numa cidade 
vizinha. 


A lista tinha como preferência as cidades de São Raimundo Nonato-PI, Petrolina
-PE e Juazeiro-BA; num segundo momento, Remanso-BA. Postos de Saúde 
foram construídos nas comunidades.

Dessa feita, por exemplo, todas as crianças passaram a ser vacinadas 

cuidadosamente, através de campanhas de vacinação; além de serem 
monitoradas, através de relatórios precisos e eficientes. Ficando assim, imunes 
de tantas - e tais - doenças. A vacina era trazida de Salvador-BA, com muita 
dificuldade. Eram dias e dias de viagem. A maior complicação estava na sua 
conservação, já que não existia energia elétrica e o gelo dos isopores tinha um 
tempo determinado como resolutividade. Portanto, demandava-se todo um 
planejamento rigoroso, desde a saída da capital baiana até a aplicação das 
vacinas nas comunidades. Atraso nem pensar. Padre Lira conduzia tudo, com 
sua competência conhecida.

Educacionalmente, atuou em duas frentes: acabar com a evasão escolar e com 

o analfabetismo. Ambas as metas ele conseguiu; naquela época todas as 
crianças estavam nas escolas estudando, assim como o índice de analfabetismo 
naquelas gerações zerou. Também foi dele o primeiro grito: “O Piauí existe, e 
merece atenção!” Acreditou no valor de sua luta social, na junção do povo e na 
união de esforços para um bem comum: a Educação.

Convenceu-se de que a Educação seria o único caminho para a superação da 

situação de extrema pobreza em que vivia boa parte das pessoas. Eu estudei 
nas escolas da Fundação Ruralista; nelas cursei o Ensino Fundamental. Tenho 
orgulho disso, muito do que sou devo a esse aprendizado. 


A edificação educacional de Padre Lira foi fundamentada no princípio de Confúcio, 
educador chinês, de ir além da lição escolar e alcançar-se a lição de cidadania, 
sabendo assim o educando, harmonizar-se com a natureza e com a sociedade; 
e não somente acumulando conhecimento, mas desenvolvendo o caráter e o 
senso de humanidade. 


Dom Inocêncio-PI passou a ser conhecido internacionalmente como o “Município Educação”. Nacionalmente, o programa Fantástico, da TV Globo, dedicou um 
especial ao nosso município, mostrando para o mundo o exemplo de sucesso 
educacional de Padre Lira.

Quer saber: por inúmeras vezes a Fundação Ruralista recebeu a visita de 

pesquisadores e educadores, e até de projetistas do MEC, querendo conhecer a experiência educacional desenvolvida aqui; também com o interesse de copiar 
um bom exemplo de Educação. Na atualidade percebemos algumas medidas 
educacionais, defendidas como grandes iniciativas nacionais, que há 40 anos já 
eram desenvolvidas por Padre Lira no sertão do Piauí.

Temos orgulho dessa marca, desse pôster, dessa história. É preciso que 

continuemos a caminhada. Um novo projeto educacional deve ser gestado. 


Aí se faz o grande propósito: não deixar essa tradição cair; não deixar essa 
história se desconstruir. A luta educacional, e social, de Padre Lira valeu a pena. 
Muito importante para o nosso desenvolvimento (pessoal, familiar, social).

Além de sua notável atuação educacional, Padre Lira teve relevante papel social.

Literalmente, ele acabou com a fome e com a subnutrição na nossa terra. 

Em toda comunidade do município foi construído um prédio escolar, e na sede 
uma megaestrutura educacional foi edificada. Estradas e mais estradas foram 
construídas, dando acesso às comunidades e possibilitando o desenvolvimento. 


Também foi edificada uma fábrica de sapatos como renda para os jovens. E o 
que dizer do projeto Bordados da Caatinga?! Este projeto envolvia, no seu pleno funcionamento, mais de novecentas (900) mulheres bordadeiras. Isso implica 
dizer,que mais de 900 famílias eram beneficiadas. Tal projeto recebeu vários 
prêmios sociais, nacionais e internacionais. Elogiadíssimo!

O município de Dom Inocêncio-PI foi criado por desmembramento do município 

de São Raimundo Nonato-PI, pela Lei nº 4.206, de 07 de junho de 1988. 
Instalado em 1º de janeiro de 1989. O projeto foi patronado por Padre Lira 
(Manuel Lira Parente), sendo ele, o primeiro prefeito. Meu tio Marinho Rodrigues Damasceno foi o vice-prefeito. 


O nome foi uma homenagem ao Santo Bispo, Dom Inocêncio López Santamaría. Posteriormente, ele foi prefeito por mais duas vezes: 1997-2000 e 2005-2008. 
Na última oportunidade não completou o mandato; renunciou em 2007, alegando problemas de saúde.
Atualmente mora em São Raimundo Nonato-PI, gozando de merecido descanso. 
Ele é um forte entre nós, viventes desta terra. E uma fortaleza de sabedoria.

Incansável semeador de saber. Aos 93 anos de idade, ler é um exercício importante 

na sua vida. Recebe visitas de pessoas que querem desfrutar de sua sábia vivência. 
Eu constantemente visito-o, levando sempre um bom livro ou uma boa revista para 
ele ler.

Padre Lira é um dos maiores patrimônios da Educação do Brasil, em matéria de iniciativa particular. Em nossa terra, ele edificou uma grande obra social. Muito do que somos devemos a ele. Obrigado, mestre. Gratidão eterna.

Marcos Oliveira Damasceno, 30 anos, escritor. Natural de Dom Inocêncio – PI. Doutorado em Filosofia Política. Membro da Academia de Trova do Piauí. Diretor-Presidente da Produtora Sertão.


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