Vejam este importante relato histórico feito por Marcos
Damasceno, escritor e historiador inocentino, profundo conhecedor da história
de Dom Inocêncio, sobre a atuação de uma figura de grande importância para
a região, o fundador do município...
Padre Lira pertence a uma geração gloriosa da Igreja Católica. Manuel Lira
Parente é homem valoroso.
Sua personalidade marca nove décadas de vida social, dedicada ao próximo.
Nasceu em 1919. Filho natural de Bom Jesus do Gurgueia – PI, sendo filho
legítimo de São Raimundo Nonato-PI. Órfão aos 7 anos de idade.
Anos depois, no começo dos anos 30, foi adotado por Dom Inocêncio.
Em 1939, o Santo Bispo coloca-o para estudar no Seminário Beneditino de
Salvador-BA. Uma iniciativa brilhante em formar um Clero com jovens nativos.
Além dele, outros jovens; Padre Solón Correia de Aragão era dessa turma.
Em 1945, Padre Lira e os demais jovens nativos são ordenados, e tornam-se
padres da Prelazia. A missão seria realizar a desobriga-missão, oportunizando
as pessoas de regiões distantes cumprirem os deveres para com a Igreja
Católica; também, assegurar-lhes os direitos católicos. Dom Inocêncio convida
a todos:
- Vamos tirar nossos irmãos do isolamento! A desobriga é uma forma de a
Igreja ir até as comunidades. (Escritos de Zeca Damasceno).
A partir desta época, houve uma revolução social na região.
Grandes investimentos e avanços significativos. Um trabalho pastoral, e social,
que atinge aos rincões isolados; evangelizando pessoas e emancipando
comunidades. E de qualidade, com boa organização e eficiência.
Batizados, casamentos, Primeira Comunhão, dentre outros trabalhos. Uma
ocasião muito aguardada pelas pessoas. Um dos pontos de sua realização era
na casa do meu bisavô João Rodrigues Damasceno (1890-1968), no Rosilho.
Juntava-se multidão, uma verdadeira festa popular. As roupas novas eram
preparadas para tal ocasião. A desobriga começava em outubro.
Os padres percorriam as regiões pertencentes à Paróquia, consequentemente,
à Diocese (na época, ainda Prelazia). O município de São Raimundo Nonato-PI
era enorme territorialmente. Longas distâncias. Existia distância de mais de
200km. O trabalho, é bom que se diga, foi iniciado por Dom Inocêncio López
Santamaría (1874-1958). O fato, é que essa missão católica - a desobriga-
missão -era tarefa difícil e trazia complicações na saúde dos padres.
Montados a cavalos eles peregrinavam semanas e mais semanas; no final,
dois meses de viagem. Não existia carro na região. Um trabalho espirituoso.
Padre Lira, por exemplo, sofreu no início uma úlcera de estômago e problemas
na garganta. O calor era pavoroso. A sede era frequente, pelas longas
distâncias entre uma casa e outra. Também era constante ele sofrer febre,
vômitos, dores de estômago e fortes dores de cabeça. Era um trabalho - por
mais que parecesse simples - de difícil realização. E muito relevante
socialmente; promovia a dignificação e a socialização das pessoas.
Além de padre missionário, Padre Lira se destaca como padre educador.
Começou sua atuação sendo professor no Ginásio Dom Inocêncio, edificado
em 1948, marco da Educação da região. Depois auxiliou Monsenhor Nestor
em outras atividades educacionais na referida instituição de ensino.
Posteriormente, foi diretor do Ginásio; com notável atuação. Além da lição
escolar, existia a lição de cidadania. Nosso mestre desenvolveu um heroico
trabalho educacional.
Padre Lira ganha expressão regional, sendo notável líder social. No começo
dos anos 50 passa a ser cortejado para a política. Recebe convite até para
candidatar-se a senador da República pelo Piauí, com reais chances de ser
eleito. Isso foi depois de ter sido prefeito são-raimundense. Não quis ser,
sendo candidato seu primo Marcos Parente, que acaba morrendo num
acidente automobilístico, juntamente com o candidato a governador
Demerval Lobão. Houve a substituição de candidatura a senatória. Surge o
nome de Joaquim Parente, irmão de Marcos Parente, que, de fato, foi
candidato e eleito senador pelo Piauí.
Na conjuntura política local, o padre missionário resiste também à ideia. Tinha
em mente que seu trabalho pastoral buscava a unidade da sociedade; tinha o
espírito de comunhão. E a política, muitas vezes, desagrega e traz desavenças. Conclamado a esperança naquele momento, acaba aceitando a missão. Foi
candidato a prefeito de São Raimundo Nonato-PI, em 1954. Numa disputa
acirrada com prof. Ariston Dias Lima, irmão do Monsenhor Nestor, o padre
ganha a eleição. Administra de 1955 a 1958. No último ano de sua gestão,
ocorre o falecimento de Dom Inocêncio. Dom Amadeo González é nomeado
Bispo Prelado.
Em 1959, no início do ano, Padre Lira pede licença à Igreja, por 4 anos, para ir
à cidade de São Paulo-SP, em busca de recursos para seu trabalho educacional.
Ao chegar a capital paulista, foi direto para o Convento dos Padres Mercedários. Receberam-lhe muito bem, mas a casa estava superlotada. Muda-se para o
Edifício Martinelli, no centro, hospedando-se num apartamento emprestado por
um parente. Sofre muitas dificuldades, por inúmeras vezes Padre Lira passa
fome. Começa a botar o plano em prática. Com algumas reservas juntadas
registra a constituição da Fundação Ruralista (ou Centro Rural), a 11 de
novembro de 1958; a instituição passa a ter formalidade jurídica. A meta, então,
seria conseguir um estabelecimento para seu funcionamento. O lugar já estava
na sua mente.
Conhece Padre Garcez, Capelão da Igreja Nossa Senhora do Rosário, que
apresenta-lhe a Condessa Matarazzo (matriarca de uma família de empresários).
Também Padre Garcez apresenta-lhe duas freiras da Congregação Filippini, que
colaboram bastante com seu trabalho. Fica em São Paulo-SP até 1962. Sua
lembrança:
- Os quatro anos (1959-1962) vividos no Martinelli são uma feliz lembrança,
embora houvesse momentos muito duros; porque passei fome, sei hoje o
que a fome significa. (“Um Homem Contra a Seca”/Peggie Benton: 1973).
Seu tio Alcibíades, funcionário público aposentado no Rio de Janeiro-RJ, viúvo,
resolve apoiá-lo. Do sobrinho, o pedido: - Vá para Curral Novo, percorra as redondezas e veja se consegue um pedaço
de terra à venda. (“Um Homem Contra a Seca”/Peggie Benton: 1973).
Alcibíades foi para Petrolina-PE, onde compra uma casa. Daí começa sua viagem,
como um bandeirante, rumo ao povoado Curral Novo, local escolhido para sediar
a Fundação Ruralista. Encontra um sítio à venda, da Dona Furtuosa, um pouco
distante de Curral Novo, em torno de 9 km. A dona resolvera vender a gleba.
Padre Lira autoriza a compra, depois que recebe a notícia do tio. O lugar não
tinha nome. Alcibíades fica arranchado durante 6 meses num umbuzeiro.
Padre Lira viaja num caminhão adquirido e muitas doações. Chega a janeiro de
1963, ao povoado Curral Novo. É recebido pelo extraordinário João de Sousa
Rodrigues – Janjão (1913-2001), homem influente e de grande hospitalidade.
Primo do meu avô. Janjão dá total apoio ao ilustre visitante, seu velho amigo.
Diante do comunicado de sua decisão em morar em nossa terra, oferece uma
casa para o padre morar; e ainda uma moça que passa a lhe secretariar: Virgínia
Oliveira, sobrinha de sua esposa Mariêta e neta de Tiago Oliveira.
Inicia-se a construção da sede da Fundação Ruralista. Ao falar sobre a proposta
de abrir escolas, de início, notadamente nas regiões mais isoladas, houve falta
de entusiasmo por parte de muitos. Existiu até resistência à ideia. O bordão:
“A Educação não compensa. Estudar pra quê? Os filhos têm é que ajudar na
roça!” Ao lamentar isso com meu tio Janjão, ouve o conselho: - Padre, muitos não fazem, embora tenham oportunidades para isso. E quando
aparece alguém que faz, eles condenam.
Acredite, pois, no reconhecimento por parte da maioria. (Escritos de Zeca
Damasceno).
Da parte dele, houve acolhimento social. A realidade, aos poucos, vai se
revelando e ele se impondo diante dela. O espírito missionário sempre fala mais
alto. Tempo de gestação de novas mentalidades, um novo saber. Algo de novo
vai fecundando nas mentes das pessoas.
Em maio de 1964, a Irmã Mary do Convento Filippini, na cidade Winchester
(Inglaterra) fala sobre Padre Lira à Dona Muriel Heading Mitchell, uma senhora
inglesa. Dona Muriel torna-se sua “mãe social” e Patrona da Fundação Ruralista,
sendo a maior apoiadora do seu trabalho.
As escolas da Fundação Ruralista começam a funcionar a 01 de junho de 1965,
com 72 alunos na sua própria sede, e 40 crianças na escola das Cacimbas.
Sendo a estrutura física precária, não existia no momento nenhum prédio escolar;
as escolas se resumiam a latadas, sem mesa para os professores e sem quadro
para escrever, com alunos sentados no chão ou em cepos de madeira.
Disse emocionado, Padre Lira: - Desejo que a escola seja para eles muito mais do que uma simples tentativa de instrução; que lhes dê tudo quanto lhes falta em casa: calor humano, recreação,
conforto, música e até comida. (“Um Homem Contra a Seca”/Peggie Benton:
1973, pág. 41).
Em maio de 1966, Kenneth Benton, irmão de Dona Muriel, é nomeado Conselheiro
da Embaixada Britânica no Brasil (na cidade do Rio de Janeiro – RJ). Sua esposa
Peggie Benton escreveu o livro “Um Homem Contra a Seca” (1973: Editora Agir/RJ,
216 pág.). Em 1967, Padre Lira recebe a notícia de que Dona Muriel estaria no Rio
de Janeiro – RJ, visitando seu irmão. Viaja para o encontro com sua “mãe inglesa”.
No mesmo ano, o casal Benton (o conselheiro e a escritora) esteve visitando a
Fundação Ruralista.
Uma maternidade rural foi construída aqui, a primeira do Brasil; batizada
“Maternidade Peggie Benton”. Até então, os índices de mortalidade infantil eram alarmantes pelo sertão, notadamente pelo “mal de sete dias”. Na verdade, era o
tétano.
Os partos eram feitos de forma empírica, por parteiras, que utilizavam
equipamentos e ferramentas sem a necessária esterilização. Com isso, o
tétano no umbigo da criança era constante ocorrer. As parteiras usavam ainda,
muitas vezes, unguentos (medicamentos caseiros ou artesanais). Outra questão desafiadora eram os índices de mortalidade de mães, no momento do parto.
De maneira, que tais indicadores sociais vergonhosos e preocupantes chamaram
a atenção do padre missionário. Com a maternidade, sediada no Sítio Embargo
(sede da Fundação Ruralista), foram atendidas duas demandas; foram resolvidos
dois negativos índices sociais. As mães contavam ainda com uma casa, onde
ficavam na ocasião do parto; chegavam dias antes e só saíam dias depois.
Padre Lira ainda disponibilizava um carro para deixar a mãe e o bebê em casa.
Como informação importante para a ocasião, eu nasci lá; nasci a 16 de março de
1982.
A Fundação Ruralista, além da maternidade, dispunha também de um grande
suporte medicinal. Nos moldes do PSF (Programa Saúde da Família).
Atendimentos emergenciais, tais como: em caso de acidentes (contenção de
hemorragia, sutura, curativos, procedimentos ortopédicos etc.), em caso de
picada de cobra (soro antiofídico), dentre muitos outros. Contava ainda com
uma ambulância, para o devido encaminhamento para um hospital, numa cidade
vizinha.
A lista tinha como preferência as cidades de São Raimundo Nonato-PI, Petrolina
-PE e Juazeiro-BA; num segundo momento, Remanso-BA. Postos de Saúde
foram construídos nas comunidades.
Dessa feita, por exemplo, todas as crianças passaram a ser vacinadas
cuidadosamente, através de campanhas de vacinação; além de serem
monitoradas, através de relatórios precisos e eficientes. Ficando assim, imunes
de tantas - e tais - doenças. A vacina era trazida de Salvador-BA, com muita
dificuldade. Eram dias e dias de viagem. A maior complicação estava na sua
conservação, já que não existia energia elétrica e o gelo dos isopores tinha um
tempo determinado como resolutividade. Portanto, demandava-se todo um
planejamento rigoroso, desde a saída da capital baiana até a aplicação das
vacinas nas comunidades. Atraso nem pensar. Padre Lira conduzia tudo, com
sua competência conhecida.
Educacionalmente, atuou em duas frentes: acabar com a evasão escolar e com
o analfabetismo. Ambas as metas ele conseguiu; naquela época todas as
crianças estavam nas escolas estudando, assim como o índice de analfabetismo
naquelas gerações zerou. Também foi dele o primeiro grito: “O Piauí existe, e
merece atenção!” Acreditou no valor de sua luta social, na junção do povo e na
união de esforços para um bem comum: a Educação.
Convenceu-se de que a Educação seria o único caminho para a superação da
situação de extrema pobreza em que vivia boa parte das pessoas. Eu estudei
nas escolas da Fundação Ruralista; nelas cursei o Ensino Fundamental. Tenho
orgulho disso, muito do que sou devo a esse aprendizado.
A edificação educacional de Padre Lira foi fundamentada no princípio de Confúcio,
educador chinês, de ir além da lição escolar e alcançar-se a lição de cidadania,
sabendo assim o educando, harmonizar-se com a natureza e com a sociedade;
e não somente acumulando conhecimento, mas desenvolvendo o caráter e o
senso de humanidade.
Dom Inocêncio-PI passou a ser conhecido internacionalmente como o “Município Educação”. Nacionalmente, o programa Fantástico, da TV Globo, dedicou um
especial ao nosso município, mostrando para o mundo o exemplo de sucesso
educacional de Padre Lira.
Quer saber: por inúmeras vezes a Fundação Ruralista recebeu a visita de
pesquisadores e educadores, e até de projetistas do MEC, querendo conhecer a experiência educacional desenvolvida aqui; também com o interesse de copiar
um bom exemplo de Educação. Na atualidade percebemos algumas medidas
educacionais, defendidas como grandes iniciativas nacionais, que há 40 anos já
eram desenvolvidas por Padre Lira no sertão do Piauí.
Temos orgulho dessa marca, desse pôster, dessa história. É preciso que
continuemos a caminhada. Um novo projeto educacional deve ser gestado.
Aí se faz o grande propósito: não deixar essa tradição cair; não deixar essa
história se desconstruir. A luta educacional, e social, de Padre Lira valeu a pena.
Muito importante para o nosso desenvolvimento (pessoal, familiar, social).
Além de sua notável atuação educacional, Padre Lira teve relevante papel social.
Literalmente, ele acabou com a fome e com a subnutrição na nossa terra.
Em toda comunidade do município foi construído um prédio escolar, e na sede
uma megaestrutura educacional foi edificada. Estradas e mais estradas foram
construídas, dando acesso às comunidades e possibilitando o desenvolvimento.
Também foi edificada uma fábrica de sapatos como renda para os jovens. E o
que dizer do projeto Bordados da Caatinga?! Este projeto envolvia, no seu pleno funcionamento, mais de novecentas (900) mulheres bordadeiras. Isso implica
dizer,que mais de 900 famílias eram beneficiadas. Tal projeto recebeu vários
prêmios sociais, nacionais e internacionais. Elogiadíssimo!
O município de Dom Inocêncio-PI foi criado por desmembramento do município
de São Raimundo Nonato-PI, pela Lei nº 4.206, de 07 de junho de 1988.
Instalado em 1º de janeiro de 1989. O projeto foi patronado por Padre Lira
(Manuel Lira Parente), sendo ele, o primeiro prefeito. Meu tio Marinho Rodrigues Damasceno foi o vice-prefeito.
O nome foi uma homenagem ao Santo Bispo, Dom Inocêncio López Santamaría. Posteriormente, ele foi prefeito por mais duas vezes: 1997-2000 e 2005-2008.
Na última oportunidade não completou o mandato; renunciou em 2007, alegando problemas de saúde.
Atualmente mora em São Raimundo Nonato-PI, gozando de merecido descanso.
Ele é um forte entre nós, viventes desta terra. E uma fortaleza de sabedoria.
Incansável semeador de saber. Aos 93 anos de idade, ler é um exercício importante
na sua vida. Recebe visitas de pessoas que querem desfrutar de sua sábia vivência.
Eu constantemente visito-o, levando sempre um bom livro ou uma boa revista para
ele ler.
Padre Lira é um dos maiores patrimônios da Educação do Brasil, em matéria de iniciativa particular. Em nossa terra, ele edificou uma grande obra social. Muito do que somos devemos a ele. Obrigado, mestre. Gratidão eterna.
Marcos Oliveira Damasceno, 30 anos, escritor. Natural de Dom Inocêncio – PI. Doutorado em Filosofia Política. Membro da Academia de Trova do Piauí. Diretor-Presidente da Produtora Sertão.

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